O documentário Samba À Paulista, feito por alunos de cursos da USP, narra a história do ritmo trazido pelos negros que hoje inspira milhares na comemoração do Carnaval de São Paulo
Na periferia marginalizada de uma São Paulo em construção, o som retumbante dos batuques anunciava uma cultura imigrante que mais tarde influenciaria a cultura brasileira de forma definitiva. Os negros, últimas gerações de escravos do final do século 19, resgatavam sua identidade perdida nos navios negreiros com o som dos seus instrumentos peculiares em um samba rural e popular, improvisado em meio às lavouras cafeeiras. Não eram poetas ou compositores, mas cantavam sua vida em ritmo dançante e contagiante.
Esta história e suas conseqüências são ricamente contadas no documentário Samba à Paulista - fragmentos de uma história esquecida. O documentário realizado por alunos da Escola de Comunicações e Artes e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP resgata, através de depoimentos e vídeos antigos, a história daquele que é o mais característico ritmo musical brasileiro e que na próxima semana embala a todos no festejo do Carnaval.
Carlão do Peruche que acompanhou de perto a mudança dos cordões para escolas de samba.
Com poucos registros históricos existentes, o documentário trabalha sempre com um diálogo entre o histórico e o atual, costurado pelo depoimento de estudiosos e daqueles que viveram os momentos áureos deste movimento popular. Personagens como Toniquinho Batuqueiro, Mestre Feijoada, Geraldo Filme, Germano Mathias e Nelson Primo contam as histórias que São Paulo não registrou e trazem à tona um movimento que por pouco não se perde no tempo. E é neste resgate de depoimentos e da história que está a grandiosidade do documentário.
Quando os negros chegam das lavouras de café à capital após a instauração da Lei Áurea de 1888, trazem consigo toda a cultura musical do interior. A cidade não os aceita e eles partem para a periferia em um movimento urbanístico de marginalização. Nas fronteiras da cidade, eles constroem centros de resistência e terreiros onde podem desenvolver sua cultura. “Entender a participação do negro neste movimento é a parte mais ensaística do documentário. Trabalhamos com depoimentos como gancho para contar esta história e usamos os raros textos que a retratam para ajudar a compor o cenário”, explica Gustavo Mello, diretor do documentário.
Dionísio Barbosa, fundador do primeiro cordão de São Paulo
“Esses negros trouxeram para São Paulo o mesmo ritmo que levaram para a Bahia ou para o Rio de Janeiro, mas aqui isso se perdeu”, aponta Eduardo Piagge, assistente de direção e pesquisador. Em São Paulo, o negro não conseguiu se integrar à sociedade e assim como seu samba de batuque tornou-se elemento marginal até meados do século 20.
Já no Rio de Janeiro, cidade que mais tarde seria modelo de Carnaval para São Paulo, os poetas e compositores abraçaram esse ritmo popular e improvisado. Com a ajuda da Rádio Nacional, a urbanização do samba rural foi difundida e popularizada. “O que mais difere no Rio foi a receptividade do espaço urbano a este movimento rural. Lá, eles estão mais próximos dos morros onde se desenvolveu o ritmo e mais para frente você vê as autoridades visitando os galpões das escolas de samba. Em São Paulo há este movimento de urbanização, mas não há a difusão como houve no Rio”, conta Mello.
Dionísio Barbosa e os cordões – A história do samba em São Paulo é feita de alguns grandes nomes. Um deles e talvez o primeiro é Dionísio Barbosa, negro da primeira geração de escravos livres que veio para a capital em busca de oportunidades como liberto. Aqui, foi para a Barra Funda, reduto negro da cidade.
Nascido em 1891, Dionísio uniu a expressão do interior paulista com a influência do samba do Rio de Janeiro, onde conheceu a Festa da Penha e todas as tradições carnavalescas cariocas. Em 1914, reuniu sua família e foi para as ruas festejar, cantar e tocar o samba que iniciou a tradição dos cordões. “Ele é emblemático porque cria essa manifestação genuína que é bem típica de São Paulo. Já havia na cidade eventos carnavalescos, mas eram manifestações da classe rica e branca. O Cordão Barra Funda era o primeiro movimento cultural organizado dos negros, o primeiro cordão da cidade, algo pequeno, composto por 15 a 20 pessoas”, explica Mello.
No Cordão da Barra Funda, os homens ensaiavam e desfilavam pelas ruas vestidos com camisas verdes e calças brancas. Este movimento foi o embrião do hoje Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco.
Mais do que um grupo que desfilava no carnaval, o cordão era um espaço de identidade reativa dos negros onde eles cultivavam todos os elementos de sua cultura. “O cordão era o espaço deles, onde realizavam bailes, cortejos e até piqueniques com elementos típicos de sua culinária em Santos ou no interior. O samba era uma parte dessa manifestação cultural”, conta Piagge.
Logo os cordões vão surgindo pelos bairros e terreiros ocupados pelos negros, como a Baixada do Glicério e Bexiga. Na época do Carnaval, os negros se fantasiavam de corte européia, com direito a rei, rainha, conde, duquesa e toda a linhagem real. Nas imagens recuperadas de um documentário de 1937, os negros dançam com suas perucas brancas e roupas elegantes levando os estandartes com o nome do grupo. À frente, vinha a baliza, alguém habilidoso que fazia diversas piruetas com um bastão. Atrás, a bateria formada por instrumentos de sopro, violões e muitos surdos, liderados por um apitador.
Saindo de seus territórios de periferia, os negros invadiam os espaços tipicamente brancos causando reações agressivas por parte de uma sociedade ainda acostumada com a escravidão. “Muitas vezes, as camadas com mais dinheiro jogavam bexigas com urina ou mesmo agrediam fisicamente os participantes dos cordões. A maioria deles preferia usar a força policial para reprimir a manifestação popular negra na cidade, assim os policiais levavam instrumentos ou mesmo prendiam membros”, conta Mello.
Dos cordões às escolas — Em meados do século 20, as escolas de samba começaram a sufocar os cordões. Inspirada pelo sucesso do Carnaval carioca, a população branca começa a se envolver no movimento e até a fundar suas próprias escolas. “Começaram a surgir mais escolas de samba do que cordões pela cidade. Mudou a manifestação. Não que tenha sido ruim, mas essa influência do Rio de Janeiro acabou sublimando um movimento típico de São Paulo”, afirma Mello, diretor do documentário.
No início, era uma manifestação amadora. As escolas ainda eram majoritariamente negras e pobres e não tinham verbas para sustentar um desfile luxuoso de fantasias e carros alegóricos. Para pagar os custos, eles passavam a taça do ano anterior para que os membros contribuíssem.
Já em 1967, com a ditadura militar recém-instaurada no País, o governo decide oficializar o Carnaval paulistano como forma de distrair o povo da repressão política. “O que era mais fácil para iludir o povo? Futebol e Carnaval”, relata Evaristo de Carvalho, radialista que participou deste movimento.